28/04/2007 20h32
CLEVANE PESSOA DE ARAÚJO LOPES
Essa foto, de quando comecei a escrever versos,aos dez anos.Mas a história a seguir aconteceu três anos antes.
1Ao longo de minha vida — e repito Neruda, o grande poeta chileno, "CONFESSO QUE VIVI" — ENCONTREI INFELIZMENTE INÚMEROS CASOS QUE FORAM UM SOCO- DE-MÃO-FÉRREA NA BOCA DO ESTÔMAGO-DE-MINHA-ALMA. Acostumada, em minha casa, estimulada por pais amorosos a amar, apreciar e proteger crianças, Sabia, perplexa de que nem sempre essa proteção acontece. Como professora, jornalista, psicóloga, já recebi inúmeros socos simbólicos ,mas dolorosos e fortes,ao deparar-me com histórias tristes ou hediondas. E como dói!Entre as que mais me marcaram, relato a seguir, várias:Quando cheguei a Juiz de Fora, menina da Ilha de Fernando de Noronha, onde morei por mais de um ano e fiz minha primeira comunhão,aos cinco anos deidade(!), fomos morar em uma casinha simpática, sempre cheia de plantas, porque mamãe as amava.
Meu pai um dia,anunciou ia receber um colega enquanto este procurava casa. Minha família sempre foi muito hospitaleira, abrigamos muitas famílias ou desgarrados. Quando a pequena família nuclear chegou — vinha do Amazonas, marido, mulher e bebê-trazia consigo uma dessas caboclinhas entregues pelos pais a famílias que deverão lhes "dar tudo", sem salário: roupas de morim barato, o calor por lá justificando o pouco gasto com roupas, escola — o sonho maior dos pais que não a freqüentaram — comida, realmente o que interessa: que os filhos não morram de fome. Nenhum direito. Já vi algumas famílias mandarem o pagamento mínimo para a família dessas pequenas domésticas. Quando morei no Maranhão, conheci inúmeras crianças e adolescentes agregados nas casas "dos brancos", receber tarefas domésticas, serem tratados com cordialidade e chegarem à faculdade. Não era o caso. Nesse, a pré-adolescente era uma escravazinha.
Mamãe se revoltava. Ajudava a menina no que podia. Púbere, de rosto gracioso e triste olhar, brotos mamários iniciando seu desabrochar, era bem mais bonita que a patroa. talvez isso despertasse ciúmes — o certo é que era muito maltratada. O filho deles era o que um médico meu conhecido chama "bebê de quarteirão": aquele para ser mostrado, gordíssimo, sinal de bons tratos naquela época.Hoje se sabe que criança obesa tem de emagrecer. Pesava muitíssimo. A garota era mignon, aquele tipo de indiazinha, cabelos negros, ossatura delicada. Também era completamente submissa e dedicada ao casal e à criança sob seus cuidados. Trocava e lavava fraldas, banhava, entalcava, como é comum no Norte. Calçava os sapatos do nenê, agora com oito meses e da madame. O casal começou a nos incomodar. Mamãe abominava aquele estranho a entrar em sua cozinha para beber café, com as botas e os olhos brilhando, estes cobiçando minha mãe ou olhando com ares de dono para a mocinha. Minha linda mãe queixou-se a papai, que intensificou as buscas por uma casa para o colega. Parece que não queriam mudar. Um dia, a pequena saiu com a criança menor, cheirosa do banho tomado, mal podendo ser carregado, qual um pequeno Buda de carne. Uma vizinha pediu para pegá-la ao colo, o que ela consentiu, certamente aliviada porque os braços finos doíam. A mulher resolveu mostrar aos familiares o gorduchinho. A babá ficou a esperar, na calçada, que voltasse com ele. Nisso, chega o senhor feudal e pergunta pelo filho. Quando ela iniciou a relatar que uma vizinha o levara por instantes para dentro da casa e que o aguardava na calçada, começou a apanhar. A ser chutada com os coturnos de militar. Arrastada para casa. A mulher que pedira a criança por instantes, trouxe-o, atraída pelo barulho,horrorizada e constrangida. Entregou o menino ao pai, que com uma das mãos, apertava o braço da garota. Arrastou-a lá para minha casa. Gritos, xingamentos, a sessão de espancamento reiniciada, sangue. Mamãe lanhada, por tentar tirar a pobrezinha das mãos cruéis. A patroa acalentava o filho ,que urrava, assustado. Em nenhum momento pediu para o marido parar. Seria medo e submissão ou prazer porque ela andava mole e desleixada após o parto, enquanto a outra florescia com os hormônios da beleza adolescente? Minha mãe nos tirou de casa e foi telefonar, algo difícil, pois nos Anos 50 nem todos tinham telefone. Eu jamais presenciara nenhuma violência e fiquei horrorizada. Talvez aí tenha surgido minha necessidade absoluta de defender injustiçados. Meus irmãos, Cleone e Máximo choravam e tremiam.
Mamãe chamou meu pai e o exército, que demorou um pouco. Quando vieram, a menina havia tomado um banho e vestido uma blusa de mamãe, com elástico nos ombros, para poder abaixar o decote e mostrar. Estava cheia de hematomas. Os lábios sangravam. Enquanto o arrogante sargento dizia que a infeliz entregara seu filho a estranhos, os soldados olhavam o pequeno corpo com roxos, o rosto ferido e abanavam a cabeça. A "justiça "foi feita: o homem perdeu a promoção, teve de mudar-se imediatamente — num instante arranjou casa (olhava mamãe espumando de ódio) e um soldado foi colocado por muito tempo na frente de sua casa. A mocinha porém, permaneceu com eles. Talvez porque os Correios não entreguem por carteiros ou a domicílio meninas espancadas. Ela talvez nem cogitasse em deixar os patrões: afinal, ali, comia-se muito... Nunca mais eu soube deles. Nós tivemos que mudar: meus pais decerto, temeram represálias. Foi a primeira vez que eu tive taquicardia.
--------------------------------------------------------------------------------1 Clevane Pessoa de Araújo Lopes é psicóloga, ilustradora, oficineira de Psicologia e Poesia, palestrista, escritora desde criança. Mora em Belo Horizonte, é potiguar e morou pelos brasis.Padece de brasileirismo, o que a faz colocar-se sempre na dor do Outro...(Esta crônica originalmente foi publicada em uma de minhas colunas no CEN, Portal Brasil/ Portugal e depois em
http://www.clevanepessoa.net/blog.phpPode ser reproduzida, com os devidos créditos:autoria, blog,site,etc)
Publicado por clevane pessoa de araújo lopes em 28/04/2007 às 20h32
asasdeborboleta16@gmail.com
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